Coquetéis hormonais para mudar a cabeça
Tem aumentado de forma assustadora o número de pessoas trans à procura de milagrosos coquetéis hormonais, capazes de transforma-las da noite para o dia em membros do gênero oposto em que foram classificadas ao nascer. Mas não apenas em membros comuns, indivíduos quaisquer do outro gênero, mas em mulheres ou homens esculturais, dignos de serem eleitos "mister américa" ou a “garota da playboy”.
O aumento indiscriminado dessa procura na internet, demonstra não apenas o fracasso dos movimentos representativos e das políticas públicas voltadas para o atendimento da população trans, mas também o quanto o público em geral (e o público transgênero MtF em particular) é completamente desinformado a respeito de coisas como sexo, gênero e orientação sexual, sem falar na quase total inexistência de profissionais de saúde que conheçam pelo menos os protocolos e procedimentos mais elementares para o atendimento, orientação e encaminhamento de pessoas transgêneras.
Embora a sociedade explicitamente não autorize ninguém a mudar o gênero em que foi enquadrado ao nascer, qualquer pessoa pode “se autorizar” a fazer essa migração, utilizando para isso as inúmeras ferramentas disponíveis na nossa sociedade narco-fármaco-pornográfica, como a denominou Paul (Beatriz) Preciado. Daí a abundância de indivíduos correndo atrás desses “maravilhosos” pacotes tecnológicos, capazes de mudar inteiramente o corpo da pessoa e, por consequência, na crença ingênua de cada uma, sua categoria de gênero na sociedade.
Apesar do grande volume de informações disponíveis, mostrando que identidade de gênero está muito mais relacionada a disposições e posturas mentais e emocionais da pessoa do que à sua anatomia e fisiologia, todo mundo parece continuar acreditando que os atributos físicos, preferências e idiossincrasias, performances sociais e até o funcionamento psíquico do homem e da mulher são determinadas pela anatomia e pela fisiologia do seus respectivos corpos. Ou seja, “corpo” de macho “determina” comportamento de homem, assim como “corpo de fêmea” determina comportamento de mulher, sendo que ambos esses comportamentos, além de serem vistos como automáticos e “naturais”, podem ser induzidos/modificados/intensificados ou suprimidos pelo uso de “coquetéis hormonais”.
Há dúzias de receitas desses fantásticos pacotes de hormônios espalhados por centenas de páginas da internet, diariamente acessadas por milhares de pessoas transgêneras ávidas por encontrar o “santo graal” que irá transformar seus corpos em exemplares mais-do-que-perfeitos do estereótipo do corpo relacionado ao gênero ao qual sonham pertencer.
É fato que o emprego de hormônios pode melhorar sensivelmente a qualidade de vida de pessoas trans: dou meu testemunho pessoal a respeito disso. A administração de hormônios, entretanto, não é algo que possa ser feito de forma genérica, a partir de “receitas” de coquetéis hormonais válidos para toda e qualquer pessoa.
Se há uma coisa que é realmente específica em cada indivíduo é a sua dosagem de hormônios. Ela nunca é igual e varia intensamente de pessoa para pessoa. De tal que forma que a “receita” ministrada, com bons resultados, a uma dada pessoa, pode não servir para nada ou, pior, ser extremamente prejudicial para outra. Isso equivale dizer que, para a hormonização ser eficaz, é necessário que a receita seja específica para cada pessoa em particular.
Além disso, no tratamento hormonal, o que conta não é a quantidade de hormônios ingeridos, mas a frequência da sua ingestão. Grandes volumes de hormônios, ingeridos em curtíssimo prazo, produzem sérios desgastes orgânicos na pessoa, alterando, muitas vezes de forma irreversível, o funcionamento normal do seu metabolismo. Como eu ouvi certa vez de uma endocrinologista, no tratamento hormonal mais vale pequenas quantidades ministradas regularmente do que grandes quantidades ministradas de uma vez só.
Dessa observação da médica, pode-se concluir que a terapia de reposição hormonal é um processo lento e maçante, que deve durar muitos meses e que tem que continuar por anos afora, enquanto a pessoa viver. Não é algo que se faz uma vez e nunca mais: terapia de reposição hormonal é um repto para a vida inteira.
Por mais que as pessoas transgêneras sejam advertidas quanto aos riscos do uso indiscriminado de hormônios “por conta própria”, sem a necessária assistência médica, a maioria está mesmo interessada é em resolver seu conflito de identidade de gênero através da “remodelação” plena e total do próprio corpo, mesmo que para isso tenha que morrer – o que, apesar de paradoxal, é extremamente verdadeiro em tratando de pessoas trans.
Apesar de todas as pessoas trans saberem que as mortes ou, na melhor das hipóteses, as graves sequelas provocadas pela ingestão desassistida de hormônios são fatos reais e frequentes dentro do gueto, poucas levam a sério as advertências. Apenas uma fração insignificante de pessoas transgêneras começam a terapia hormonal com a assistência de algum profissional de saúde.
A bem da verdade, raríssimas pessoas trans procuram e encontram um profissional pelo menos familiarizado com os protocolos e procedimentos de terapia hormonal voltada para pessoas transgêneras. A maioria dos profissionais de saúde jamais teve contato com esse assunto, que ainda não é nem ao menos mencionado nos currículos dos cursos de medicina. Sem contar que os protocolos de terapia hormonal para pessoas trans que desejam fazer a cirurgia de readequação genital são totalmente distintos dos protocolos destinados ao tratamento hormonal de pessoas trans que não pretendem se operar.
Os profissionais de saúde, por sua vez, na sua maioria, têm uma visão profundamente conservadora sobre a condição transgênera, que leva muitos deles a recusarem o tratamento de pacientes transgêneros ou adotarem procedimentos ortodoxos, que já caíram completamento em desuso no resto do mundo.
Ademais, pessoas trans que esperam receber atendimento através do SUS, na maioria das vezes têm que aguardar muitos meses e até anos nas filas, correndo o risco de, ao serem finalmente atendidas, encontrarem profissionais exatamente como aqueles que descrevemos antes.
Praticamente não existem profissionais treinados (ou minimamente interessados) em atender pacientes transgêneros. Profissionais que não só “atendam” mas que sobretudo “entendam” da questão transgênera do ponto de vista clínico. Apesar de intensas e sucessivas buscas, a maioria de nós acaba encontrando apenas profissionais totalmente desinteressados no nosso caso ou, pior ainda, altamente preconceituosos e “moralistas” em relação às nossas demandas.
Por outro lado, a escolha de pacientes aptos a participar dos programas públicos de atendimento a pessoas trans – isso nos pouquíssimos lugares onde tais programas existem – em geral baseia-se em critérios absolutamente estereotipados que leva muitos profissionais de saúde a recusarem o tratamento hormonal a pacientes machos que “não se parecem” com mulheres e a pacientes fêmeas que não se parecem com homens. Esses profissionais estão baseados no execrável “senso comum” de que, se um macho deseja ser uma fêmea tem que ter um corpo “minimamente parecido” com o corpo - estereotipado - de uma fêmea.
Enquanto nada se faz para melhorar esse estado de coisas, através de uma ampla conscientização do que é realmente a condição transgênera, tanto dentro da população "T" quanto junto aos profissionais de saúde, “identidade de gênero” vai continuar sendo um atributo inteiramente “materializado” no corpo, apenas “mais uma” dentre as inúmeras funções fisiológicas do organismo humano.
E as pessoas trans vão continuar procurando receitas milagrosas de transformação corporal através dos hormônios quando, antes de mais nada, deviam estar procurando coquetéis hormonais para mudar a cabeça: delas, dos profissionais de saúde e de toda a sociedade.